segunda-feira, junho 20, 2011

O diário de Lot - O traidor

                             
"A palavra calma desvia a fúria..."

Era mais um dia de trabalho normal quando um colega de trabalho, de outro setor, se aproximou de mim meio sem graça para conversar. O Carlos era um funcionário de cargo importante, que raramente ia ao meu setor, e nos conhecíamos apenas de vista das festas da empresa.

C: Bom dia Lot, tudo bem?
L: Carlos! Que faz aqui? Beleza e você?
C: É, eu não apareço muito por aqui, eu sei - ele riu meio sem graça - então, eu estou vivendo né. Mas aqui, posso conversar com você quando tiver um tempinho?
L: Claro, quando você quiser.
C: Vai almoçar fora hoje?
L: Eu normalmente almoço em casa, mas se a hora do almoço for melhor pra você, por mim tudo bem.
C: Não quero atrapalhar você, mas se puder, tem um restaurante aqui perto, barato e bom.
L: Ok, nos vemos lá então. Conheço o restaurante.
C: Ok, até mais então.
L: Até.

Não vou mentir que tinha ficado curioso. O Carlos tem idade para ser meu pai, e, nesse tempo de experiência, descobri que as pessoas que não me conhecem normalmente pedem para conversar comigo em busca de conselhos. E era muito estranho me imaginar dando conselhos para alguém mais velho. Claro, tinha já encontrado pessoas mais velhas, mas era diferente. Não era um colega de trabalho, alguém que eu sabia da existência antes de vir conversar comigo. E alguém que tinha me procurado para conversar, e não o contrário.

De qualquer forma, cumpri as minhas obrigações e no intervalo do almoço fui ao restaurante combinado. Carlos já estava lá, e parecia muito nervoso.

C: Ei Lot.
L: Ei Carlos. Mas então, me diga, em que posso ser útil?
C: Então Lot, não sei como dizer isso. Você tem idade para ser meu filho, mas eu não encontrei ninguém mais que imaginei que pudesse me ajudar como você. Você já ajudou tanta gente nesse mundo né? Acho que pode me ajudar.
L: Não é pra tanto, mas do que se trata?
C: ...Ok, vou dizer de uma vez, porque não tem jeito mais fácil de dizer isso. Eu traí minha esposa. Ela sabe, nós nos separamos há alguns meses. Mas agora que caiu a ficha do que eu fiz e eu a amo muito. Eu a quero de volta, mas sei que não mereço. Traí  a confiança dela, dos meus filhos, eu destruí minha família.

Eu gelei. Não tinha ideia do que fazer ou falar. Queria mesmo era sair correndo dali, porque não tinha solução viável para o que ele estava dizendo. Tentei falar alguma coisa...

L: Olha Carlos, não sou casado, não tenho filhos, mas eu entendo o que é traição. Eu também sou um traidor.
C: Você?? Mas Lot, você é a pessoa mais correta que eu conheço.

Antes que ele desistisse de conversar comigo eu completei...

L: Eu traí, e traio todos os dias. Você sabe que eu sigo uma mensagem que alguém me ensinou. Mas ao fazer coisas contrárias ao que está escrito, eu me torno um traidor.
C: Eu até entendo Lot, mas não é a mesma coisa. Você traiu um ideal, eu traí minha esposa. A mulher da minha vida.
L: Eu traí, aliás, todos nós traímos, o meu criador. Aquele que me salvou de viver a vida inútil que eu vivia. Nada pode ser pior que isso. Ele me deu um presente que eu não posso pagar e, ao invés de viver minha vida em eternas ações de agradecimento, preferi decepcioná-lo.
C: É, olhando sob esse ponto de vista...mas eu não sei se minha esposa vai me perdoar.
L: Você já tentou pedir perdão?
C: Não tive coragem de procurá-la até hoje.
L: A primeira coisa que você tem que fazer é perdoar a si mesmo.
C: Isso é impossível.
L: Quase que concordo, mas esse tipo de coisa a gente só consegue quando vê que, mesmo sem ser digno de perdão nenhum do Autor de nossas vidas, Ele nos perdoa todos os dias e literalmente esquece tudo de ruim que fizemos. Aí sim conseguimos nos perdoar.
C: Mas não pode ser tão simples assim Lot.
L: Temos que abrir mão do nosso orgulho e aceitar que não merecemos e mesmo assim podemos ganhar. Não é fácil mesmo não.
C: Está na hora de voltarmos. Podemos continuar depois o assunto?
L: Claro. Boa tarde.
C: Bom trabalho.
L: Igualmente.

Apesar de ter terminado como se ele quisesse me enrolar, vi em Carlos uma confusão diferente daquela que vi de manhã, é como se ele estivesse assimilando a ideia de que realmente poderia ser perdoado. Ele estava começando a ver que o presente do Autor era irresistível.

Nos encontramos ao final do expediente dois dias depois e Carlos estava com uma nova aparência. A aparência que eu já conhecia de alguém que era perdoado.

C: Lot, muito obrigado!
L: Por que Carlos?
C: Hoje vou conversar com minha esposa. Ela tem todo o direito do mundo de não me perdoar. Eu gostaria muito que ela me perdoasse e vai ser difícil viver sem tê-la ao meu lado. Mas caso isso não aconteça, sei que eu já fui perdoado. Eu preciso conversar com ela, nem que seja apenas para falar dessa mensagem pra ela. Você se importaria em ir comigo?
L: Fico muito feliz com essa notícia Carlos e imagino que seria melhor que você fosse sozinho, mas se você acha necessário, eu vou sim.
C: Amanhã eu vou lá e finalmente ver meus filhos, te encontro aqui então para irmos pode ser?
L: Combinado.

Deveria ter falado não, pensava eu naquele momento, porque eu fui me meter em briga de casal? Mas depois a minha escolha se mostraria acertada. No dia seguinte, então, no horário combinado, nos encontramos na porta da empresa e fomos à casa de Carlos.

Chegando lá, eu deixei que ele fosse primeiro, e a esposa abriu a porta e só não bateu a porta porque viu que ele estava acompanhado. Como a entrada da casa era próxima ao passeio, ouvi a conversa de Carlos com sua esposa, Denise.

C: Olha, antes de mais nada, desculpe por ter sumido. Eu não mereço nada de você, nem dos nossos filhos. O que eu fiz é imperdoável. Mas eu te amo, sou um novo homem, e, se você me permitir, quero reconquistar sua confiança e amor dia após dia, todos os dias de nossas vidas.
D: Carlos, eu...eu não te esperava aqui. Eu...não sei o que dizer. Eu não sei o que eu fiz para receber o que você me deu. Eu nunca te trairia. Eu nunca deixei de te amar.
C: Eu sei. Você não fez nada meu amor - Carlos, apesar de tentar, não conseguiu segurar as lágrimas - eu que fui o culpado, eu que trabalho demais, e que nunca dei atenção para vocês. Eu que troquei nossa família por uma aventura de um dia. Desculpa, não estou chorando para te comover, eu...eu tentei segurar, mas eu te amo tanto, eu não quero te perder.
D: Quem é esse garoto no carro?
C: Um colega de trabalho. É por causa dele que estou aqui hoje. Se não fosse ele, ainda estaria me afogando em minhas próprias mágoas.
D: Não quero ficar conversando sobre isso aqui na rua. As crianças ainda estão na escola. Vocês querem entrar?
C: Se você me permitir...
D: Entrem.

Entramos. Lá conversei com Denise, contei sobre a rápida conversa que tinha tido um dia no almoço com o marido dela, sobre as mudanças que ele tinha tido, tudo por causa do Autor.

Lá também fiquei sabendo da história do casal. Carlos trabalhava demais e Denise, além de trabalhar fora, tinha que cuidar da casa, das crianças, de tudo, porque não tinha babá nem empregada, por decisão deles mesmo. Eles não se viam mais, não conversavam mais, não falavam de pequenas coisas que irritavam um ao outro por medo de deixar o par chateado. Depois das crianças eles não tinham mais momentos a sós, eram como dois estranhos dormindo na mesma cama. E Carlos, por não ter deixado de ser homem por tudo isso, procurou satisfazer suas necessidades em um lugar mais fácil e mais cômodo, sem pensar nas consequências que essa diversão lhe traria.

Fui embora mais cedo, porque minha mãe poderia ficar preocupada, mas Carlos lutou ainda alguns meses, antes de conseguir a confiança da esposa de volta. Hoje, quase um ano depois, eles se casaram de novo (não haviam se divorciado legalmente, mas resolveram fazer os votos novamente), Carlos falta a eventos da empresa em prol de sua família e Denise voltou a frequentar os salões de beleza. As crianças voltaram a tirar boas notas na escola. Claro, não era tudo perfeito. Não pode haver 100% de momentos bons quando duas pessoas diferentes convivem entre si todos os dias, e todas as pessoas são diferentes. Mas eles eram um casal feliz. Um casal que aprendeu a superar as dificuldades e faziam questão de se conquistarem todos os dias. Denise conheceu o amor e o perdão do Autor, e por isso resolveu perdoar o marido.

Claro que nem sempre é assim, conheci diversos casais que nunca se reconciliaram, e até já ajudei um outro conhecido a reatar o casamento, mas não tinha sido possível. Denise poderia não ter voltado a se casar com Carlos, mesmo tendo o perdoado, sem ter cometido erro nisso, mas foi uma decisão que ela tomou, e que eu achei bacana.

Quanto a mim, apliquei ao meu contexto a lição que aprendera, tentando ser um filho melhor todos os dias. Se todos tentassem fazer a própria parte na busca de felicidade conjunta, muitos lares desfeitos poderiam ser refeitos, ou nunca terem chegado a ser desfeitos.

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