segunda-feira, junho 08, 2009

O diário de Lot - O perseguido (Parte I)


"Naquele tempo houve um grande tumulto por causa do Caminho"

Depois de ter construído o centro de ajuda no bairro de Pedrinho eu acabei ganhando uma certa notoriedade pública. Evitei o máximo que pude, mas não tinha como negar a diferença que o projeto estava fazendo pela comunidade. Evitei aparecer, porque no final das contas eu me tornei um assessor do projeto. Quem realizava mesmo as ações eram os membros da comunidade. Vitor acabou se tornando um grande líder por lá.

Certo dia estava voltando da faculdade quando ouvi por acaso algumas pessoas dizendo: É ele! É ele o arruaceiro orgulhoso que inventou aquilo tudo!

Como estava bem cansado nesse dia, que tinha sido bem corrido na faculdade, nem dei muita atenção. Até que vi na TV a manchete: FUNDADOR DE CENTRO DE AJUDA CRIADO EM BAIRRO CARENTE É SUSPEITO DE FRAUDE E DESVIO DE DOAÇÕES. Não sabia o que dizer, nem o que fazer. Tinha plena certeza de que estavam falando de mim, mas também estava convicto de que eu não tinha feito nada de errado. Foi quando Vitor me ligou:

V: Você viu?
L: No jornal?
V: É, eu não acredito no que vi!
L: A minha ficha ainda não caiu.
V: Desconfio quem teria coragem de fazer uma coisa dessas.
L: De onde surgiu isso? (eu ainda não estava raciocinando direito, por isso nem ouvi a última afirmação de Vitor).
V: Lembra que algumas pessoas da vizinhança, da parte nobre do bairro, começaram a falar que queríamos ganhar dinheiro?
L: Não.
V: Algumas pessoas do centro de ensino da Mensagem, na parte nobre do bairro. Como não lembra?

Perdi o fôlego por alguns instantes. De repente minha ficha realmente caiu. Na época que iniciamos o projeto, algumas pessoas de centros de ensino da Mensagem vieram nos ajudar. O responsável pelo centro daquele bairro ficou bastante desconfiado. Ele veio conversar comigo. Vamos supor que o nome dele fosse Guilherme.

G: Fiquei sabendo que vão criar um centro de ajuda aqui na região pobre do bairro.
L: Vamos sim!
G: Você se mudou para esse bairro, ou mora aqui? Não me lembro de você.
L: Na verdade, eu moro a uma distância considerável daqui.
G: Porque não instalou um centro de ajuda no seu bairro?
L: Bem, o meu bairro não tem condições tão precárias quanto essa região aqui do bairro.
G: Uma vez tentamos fazer algo por essas pessoas. Nós lhes demos cesta básica por um tempo, mas logo eles começaram a vender as cestas para comprar drogas. Esse povo é todo rebelde. Não estão dispostos a ouvir a verdade.
L: Que verdade?
G: Ora, depois que fizeram isso é claro que tiramos a ajuda. Fomos bem claros ao dizer que lugar de bandido não é na rua, é na cadeia. Se eles queriam ser bandidos tinham mais é que estar na cadeia.
L: Não foi um pouco duro?
G: Você ouviu o que eles fizeram?
L: Ouvi. As pessoas erram. O senhor nunca errou?
G: Menino, você não tem ideia de com quem está se metendo. Sai logo desse centro ou então eu tiro você desse centro.
L: O senhor está me ameaçando?
G: Estou te dando um aviso. O que tiver que ser feito vai ser feito.

Esse diálogo ficou bem vívido na minha cabeça por um bom tempo. E eu andava meio apreensivo toda vez que ia visitar o centro. Mas os resultados foram tão positivos, e o Autor da mensagem sempre me instruia a continuar, não importando quão difícil fosse. Eu continuei no projeto, mas como assessor. Sabia que tinha muito mais a fazer em outros lugares também. Vitor era alguém da minha confiança, por isso o deixei como supervisor. Depois de me recuperar do susto, disse algumas palavras para o Vitor:

L: Foi o Guilherme.
V: Exatamente. Também desconfio disso.
L: Vamos à sede desse canal para esclarecermos as coisas.

Mal sabíamos nós que aquilo tudo era uma emboscada. Quando chegamos lá, além de cobertura nacional de todos os canais, um batalhão de policiais nos esperavam. À frente deles estava Guilherme, que com um sorriso irônico estampado na face dirigiu a palavra a mim (de forma discreta, para não aparecer nas câmeras):

G: Eu disse que você não tinha ideia de com quem estava se metendo.

Eu não conseguia dizer nada. Os repórteres faziam mil perguntas, os policiais nos algemaram rapidamente, mas eu estava completamente em estado de choque. Dentro do camburão Vitor disse aos policiais:

V: Acredito que nós temos o direito de saber o que está acontecendo, e temos direito a um advogado.

Sabia que tinha escolhido a pessoa certa para assumir a liderança do projeto. Vitor viu que eu não teria reação por um longo tempo, por isso tomou à frente de tudo. O policial respondeu:

P: Assim que chegarem a delegacia vocês terão um advogado esperando. Ele irá explicar tudo. Logo depois vocês terão que comparecer à coletiva de imprensa que está marcada para logo mais.

Quando chegamos, o advogado, que chamarei de Ian, nos explicou que Guilherme de alguma forma tinha conseguido ligar o projeto a desvios financeiros, apoio ao tráfico, prostituição e aliciamento de menores. Foi quando eu consegui falar:

L: Como?
I: Ele tem provas. Não será um caso muito fácil. Vocês podem assumir parte da culpa e podemos negociar.
V: Somos completamente inocentes. Que provas ele tem?
I: Ele tem documentos, registros telefônicos, fotos e filmagens. Escutem, vocês foram pegos. Mas pelo acordo podemos conseguir reduzir a pena.
V: Com todo o respeito senhor, acho que você não entendeu. Somos inocentes. I-NO-CEN-TES. O projeto tem mostrado diminuição da criminalidade, da prostituição e do trabalho infantil. Isso já foi tema até de reportagem.
I: Normalmente eu não acreditaria em vocês. Eu iria insistir para vocês assumirem a culpa e partirmos para o acordo. Mas conheço um amigo seu, Lot seu nome certo?
L: É, meu nome.
I: Conheço o André, ele é filho de um amigo meu. Ele sempre chega contando de como você é convicto daquilo que acredita. Como você é alguém de caráter. Ele mesmo não acredita em nada, mas sabe que você teve uma mudança de vida e que é de confiança. Quando ele viu a reportagem ligou para mim e pediu para eu advogar em favor de vocês dois.

Se antes eu estava sem palavras, agora então queria sumir do mundo. Era tudo tão confuso. O André, logo o André, totalmente indiferente ao que eu fazia ou falava, ele veio me defender? Afinal, o que estava acontecendo?

Ian nos explicou que Guilherme tinha pego as provas, contatado a principal emissora de televisão do estado, e, junto com eles, chamaram a polícia para supostamente nos pegar em flagra.

I: Bem, vocês tem que ir a entrevista agora. A minha orientação é que vocês digam que as investigações estão sendo inciadas agora. Quem estiver certo no final vai ganhar esse caso. A justiça será cumprida.
L: Vitor?
V: Oi.
L: Você pode dizer isso? Sinto que não vou conseguir dizer nenhuma frase diante das câmeras.
V: Eu digo. Lot, acredite em mim, vai dar tudo certo.

Quando aparecemos para a entrevista diferentes coisas aconteciam ao mesmo tempo. Os repórteres queriam todos perguntar ao mesmo tempo de modo que o próprio Guilherme teve que organizar as coisas. Lá fora, podíamos ouvir pessoas gritando e nos xingando. Alguns falando mal da Mensagem, e de todos os que seguiam o que ela ensinava. Esporadicamente ouvíamos vozes conhecidas, de pessoas da comunidade que estavam lá para nos defender. Cheguei a ouvir a voz da minha mãe e de Maria. Fiquei aterrorizado. Eu realmente não conseguiria falar nada naquele momento. Vitor foi exemplar. Repetiu exatamente a frase que Ian nos orientou a dizer, e depois disse que só após o início do processo estava autorizado a dar mais detalhes. Ele estava certo. O sigilo não permitia que ninguém falasse nada antes que se iniciasse o processo.

Passamos aquela noite atrás das grades, mesmo sem nenhum antecedente criminal em nossas fichas. Ian mais tarde usaria isso em nosso favor. Naquela noite pela primeira vez consegui exprimir alguma emoção. Vitor estava radiante, por pensar que aquilo era uma perseguição por ele estar seguindo a verdade. Eu estava aterrorizado, me sentindo completamente impotente. Foi quando eu comecei a chorar.

L: Eu queria saber o que eu fiz para merecer isso. Porque acontecem coisas como essa a pessoas como nós? Mesmo que se prove que somos inocentes - o que parece que vai ser bem difícil, apesar de nós sermos - sempre teremos a fama de ladrões, corruptos e coisas do tipo.
V: Eu não estou te reconhecendo. Afinal de contas você levou a mensagem para minha casa. Você é que influenciou o André de tal forma que, mesmo que ele ainda não acredite na mensagem, o fez trazer um amigo da família para nos defender. Você influenciou tantas pessoas. Vai desistir agora?
L: Eu não sei o que fazer. Estou desesperado.
V: A verdade vai prevalecer no final. E isso vai servir para te fortalecer ainda mais, pode acreditar.

Caí no sono depois de muitas lágrimas derramadas.

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