segunda-feira, janeiro 05, 2009

O diário de Lot - os esquecidos

PARTE I


"Percebi ainda outra coisa debaixo do sol: os velozes nem sempre vencem a corrida; os fortes nem sempre triunfam na guerra; os sábios nem sempre têm comida; os prudentes nem sempre são ricos; os instruídos nem sempre têm prestígio; pois o tempo e o acaso afetam a todos"

Logo após o incidente com Mara, eu passei por uma situação bem diferente de qualquer outra que eu já tivesse passado antes.

Um garoto, de uns dez ou onze anos, veio me pedir dinheiro para comprar um lanche, enquanto eu estava no intervalo da faculdade. Se fosse um dia comum, eu agiria de uma de duas formas: ou eu compraria um lanche para o garoto, ou eu diria que não podia ajudá-lo naquele momento, e inventaria uma desculpa qualquer. Mas aquele não era um dia comum. Eu comprei um lanche para o garoto, e o chamei para se assentar comigo. No início ele ficou um pouco receoso, mas acabou sentando. Ele será chamado de Pedro.

L: E então garoto, o pão de queijo está gostoso?
P: Está sim, muito gostoso.
L: Você está aqui tem muito tempo?
P: Eu venho todo dia aqui.
L: Não, não, quis dizer se hoje, você já está aqui desde cedo?
P: Ah, ah, chego sempre cedo, umas oito horas, pra conseguir moedas suficientes para lanchar.
L: Já que paguei o lanche hoje, o que vai fazer com esse dinheiro que conseguiu até agora?
P: Vou comprar pão e levar pra casa, mas não consegui muito não.
L: Mas já é de tarde, não conseguiu muito?
P: Não, quando eu era mais novinho conseguia mais, mas agora as pessoas acham que eu sou ladrão, ou que vou usar o dinheiro pra outras coisas.
L: O que você acha de as pessoas acharem isso de você?
P: Ah, já estou acostumado, até porque, a maioria dos garotos que eu conheço faz isso mesmo, sai pra rua pra pedir dinheiro e, ao invés de usar pra alguma coisa, usam pra comprar drogas, pra comprar bebidas, pra fazer muitas coisas erradas.
L: Você tem irmãos?
P: Vivo tenho quatro.
L: Tinha quantos?
P: Tinha seis, mas um morreu quando era pequeno, de pneumonia, e o mais velho morreu porque estava devendo o traficante do morro.
L: Onde você mora?
P: Nessa favela que tem aqui perto, mais afastada do centro. Olha moço, o lanche estava muito bom, mas a tarde ainda não acabou, preciso ver se consigo mais dinheiro.
L: Ok, qual é o seu nome?
P: Pedro
L: Pedro, volte aqui amanhã nesse mesmo horário, que eu quero continuar conversando com você, eu te pago um lanche e compro alguns pães, pra você não "perder" tempo comigo a toa.
P: Tudo bem, muito obrigado moço.
L: Por nada.

O que tinha me chamado a atenção naquele garoto, que nunca me chamou atenção em nenhum outro eu não sei, mas no dia seguinte nem cheguei a dizer para meus amigos da faculdade aonde ia, apenas corri para o supermercado mais próximo e comprei algumas coisas para Pedro, em seguida fui a lanchonete, pedi meu lanche, e me assentei exatamente no mesmo lugar que tinha assentado no dia anterior. Alguns minutos depois Pedro chegou.

P: Você veio mesmo, achei que era mentira.
L: Claro que vim, eu disse que viria, pode acreditar quando eu disser.
P: É, desculpa, é que as pessoas costumam prometer algumas coisas e nunca cumprem.
L: Você é um garoto bem esperto para sua idade.
P: Já me disseram isso antes.
L: Você estuda?
P: Até ano retrasado estudei, mas devo voltar esse ano, porque minha mãe precisa do bolsa escola.
L: Você gosta de estudar?
P: Gosto bastante, mas é difícil quando a gente é pobre. Minha mãe sempre diz que o que é mais difícil é o que a gente tem que lutar mais pra conseguir, quando a gente sabe que é a coisa certa pra nós.
L: Sua mãe é uma pessoa bem sábia.
P: Não, ela só aprendeu a ler, mas lá perto da favela tem uma biblioteca pública, e ela pega uns livros lá pra ler, ela gosta de ler muito.
L: Você gosta também?
P: Muito. A gente fica competindo quem lê mais livros. O meu irmão de 16 anos trabalha perto de uma banca, e as vezes traz umas revistas que o moço da banca diz que estão estragadas e dá pra ele. O outro, de 13, tem um amigo na escola que empresta uns livros legais pra ele. A minha irmã, que tem 8, gosta de histórias em quadrinhos, e o mais novo, de 5, ainda não sabe ler, mas acho que vai gostar também quando crescer.
L: Você tem uma família bem legal, queria poder conhecê-los algum dia.
P: Uai, se você quiser, eu falo com minha mãe hoje e você vai lá amanhã, quando puder ir.
L: Sério?
P: Sério. Vou falar com ela.
L: Fala mesmo.
P: Vou falar, tenho que ir agora.
L: Tudo bem, mas antes, trouxe os pães que disse que iria trazer, e mais algumas coisas que podem ajudar vocês.

No dia seguinte lanchei de novo com Pedro, e tivemos mais um tempo de agradável conversa. Combinei de encontrar com ele na lanchonete logo que minhas aulas do dia acabassem e assim foi. Andamos cerca de 30 minutos e chegamos a favela onde Pedro morava, era a terceira casa de baixo para cima. Tinha cozinha, banheiro e um cômodo dividido em dois por uma espécie de cortina, formando, assim, dois quartos. Cada um com uma cama de casal. Pedro me explicou que no quarto onde tinha uma televisão antiga era o quarto da mãe dele, mas dormiam naquela cama ela, o irmão de 5, a irmã de 8 e no outro quarto, que era o dos filhos, dormiam o irmão de 13 e o de 16. Ele mesmo dormia cada dia em uma cama, mas na maioria dos dias dormia no quarto dos filhos.

Fui muito bem recebido pela família, e tivemos uma longa conversa até o irmão mais velho de Pedro chegar. Então a mãe de Pedro insistiu em fazer um lanche para mim, e eu aceitei. Com as bolsas família e escola que a família recebia, mais o pequeno salário do filho mais velho, a família recebia menos de três salários mínimos. Depois, quando os mais novos dormiram, incluindo Pedro e o irmão de 13, tive uma conversa mais séria com a mãe de Pedro e o irmão mais velho dele, os quais chamarei de Joana e Vitor.

L: Que situação difícil a que vocês vivem né?
V e J: Bastante.
J: Mas a gente não se deixa abalar por isso não. O pai desses meninos me deixou quando o mais novo nasceu, porque disse que não aguentava mais menino pra criar. Alguns meses depois o meu filho, que tinha 2 anos na época ficou doente, parecia gripe. Como não sarava levei ele pro hospital mais perto, e me disseram que era gripe mesmo, pra eu não preocupar. O mais velho, que na época tinha 17, me deu um dinheiro pra eu pagar uma consulta particular, mas era dinheiro de droga, eu não quis. Ele pegou o menino e levou ele pra consulta, onde descobriram que era uma pneumonia grave, e a médica mandou internar no hospital universitário que tem aqui perto. Ele ficou internado uma semana, mas já tinha avançado muito, e ele não resistiu. Um ano depois esse meu filho mais velho se envolveu numa briga de traficantes, e acabou morrendo. Os traficantes não morreram nenhum, a polícia nem teve coragem de entrar aqui, porque sabia que ia morrer também. Eu não estou contando isso pra você ter dó da gente não, mas desde aquele dia, eu mudei de vida. Eu poderia ter ficado em depressão, mas isso é doença de rico, pobre não pode ter isso não, senão morre de fome. Eu comecei a trabalhar de doméstica e aprendi a ler e escrever. Comecei a pegar uns livros na biblioteca e comecei a gostar muito de ler mesmo. Um dia, lendo um livro famoso, a filha da patroa me viu com o livro e falou que tinha roubado dela. A patroa não quis nem ver se era verdade, me mandou embora e me denunciou pra polícia. Quando cheguei lá o policial viu o selo da biblioteca e me liberou com uma advertência. Por causa dessa advertência nunca mais consegui emprego, e quando as pessoas esqueceram dela, eu já era muito velha pra poderem me contratar. Então o Vitor começou a trabalhar num programa da prefeitura e o Pedro começou a pedir dinheiro na rua. Tirando o pequeno, os outros também fazem isso. No fim do dia dá pra comprar uns pães, manteiga, arroz, feijão, e tem alguns meses que dá pra comprar carne. Mas esses meninos vão estudar todos, e vão ter um futuro melhor, eu tenho certeza. E eu falo demais né meu filho, você deve ter cansado.
L: Na verdade, eu achei fantástica a sua história, você dá para os seus filhos a certeza de um futuro melhor dando estudo pra eles.
V: Com certeza, o Pedro mesmo, um dia vai ser doutor e minha mãe vai ficar muito feliz. Mas essa não é a história da maioria do povo aqui não moço.
L: É, infelizmente não. E pode me chamar de Lot.
V: Nome diferente, mas tudo bem, Lot.

Continua...

Um comentário:

Frederik disse...

Vou comentar mesmo quando ler tudo...o que sera daqui a pouco, até agora posso dizer que ja estou emocionado


ta sendo bom amiga

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